16 dezembro 2007

“Quem somos? Grande peleja!”

Julgo que será sempre um bom exercício re-ler a introdução de Artur Morão a partir de algumas outras, breves, ideias-chave.

Na verdade, o tempo presente é o que resta de um longo percurso que começa em Descartes, mas sobretudo em Giambattista VICO [1668-1744]. À formulação escolástica “verum est ens” [“o ente é a verdade”], Vico contrapõe, como diz Ratzinger, “verum quia factum”. Enquanto que para a Antiguidade e Idade Média é o próprio ser que é verdadeiro, porque é pensado, porque ‘é sonhado por alguém’, porque é criado ex nihilo e, assim, vive ‘na plenitude dum Sentido pleno’, para Vico, que «abre a sessão da modernidade», o verdadeiro conhecimento é o conhecimento das causas. Ou seja, a partir de Vico só podemos conhecer verdadeiramente aquilo que nós fizemos, porque só nos conhecemos a nós mesmos e, a partir desse conhecimento é que podemos abalançarmo-nos a investigar a natureza de tudo que saia das nossas mãos. No lugar da velha harmonia entre ‘verdade e ser’, instala-se uma nova que iguala a verdade à facticidade: “só podemos conhecer o ‘factum’, o feito pelo Homem”. O que está para lá da mão do Homem é sempre incognoscível, improvável, in-verdadeiro.

Primeira conclusão: a História e a Matemática, paulatinamente, vão-se tornando as ‘únicas ciências’. Em Hegel, e em Comte, a filosofia torna-se uma questão da História, em que o próprio Ser é visto como um processo histórico. Em Marx a economia é repensada em termos históricos e até as ciências naturais, em Darwin, não são mais do que a narrativa de uma evolução histórica [‘o evolucionismo’]. A astronomia e a astrofísica encarregaram-se de destruir todo e qualquer romantismo à cerca do Universo; este deixa de ser a habitação das mais altas aspirações humanas e converte-se num processo expansivo constante que, no seu movimento próprio, há-de chegar a um términus.

Em suma: não é de admirar que o Homem pós-moderno seja aquele que não consegue observar mais além de si próprio e, se julga que não, é sempre através de factos [dos ‘factum’] que o faz, reconhecendo-se prisioneiro duma redoma fatídica [‘fatum’, destino]. O Céu, do Homem de hoje, é “uma situação muito estranha”: o Homem actual ergueu o ‘seu céu’, no qual deve esforçar-se por se aceitar a si próprio também como um mero produto do acaso histórico.

Nunca nos vimos tão limitados na nossa fantasia!, ao construirmos um Mundo encerrado em si próprio. Como diz o poeta: “Não há melhor forma de ser livre que dependermos de alguém...”. Mas, hoje, o Homem está só!, a mais nefasta forma de dependência.

A Conferência de A. Morão lança o desafio: depois do fim da Cristandade, como/o quê ser cristão, hoje? Este desafio sai-me ao encontro sob a forma de uma visão [nova?] de Deus.

“Deus não pode estar presente na criação senão sob a forma de ausência.” [Simone Weil] “Deus é essencialmente invisível” [Ratzinger], enquanto o Homem é o ‘ser-que-vê’, limitado pelo espaço daquilo que pode ver e tocar. Então, o real/verdadeiro é aquilo e somente aquilo que vemos, desmontamos, tocamos e mensuramos, interpretamos e analisamos, ou também é aquilo que existe para lá de todo o ‘factum’, do qual nem sequer temos um entendimento mínimo? Ser cristão será então fazer “a opção de não considerar irreal o que não se pode ver e aquilo que de modo algum pode ser colocado no campo visual, acreditando que precisamente aquilo que não é visível é que representa a verdadeira realidade que sustenta e possibilita toda a realidade restante.” [Ratzinger] “Ter fé significa, então, decidir que, no âmago da existência humana, há um ponto que não pode ser alimentado e sustentado pelo que é visível e tangível, mas que toca na fímbria daquilo que não é visível, a ponto de este se tornar tangível revelando-se como algo
indispensável à existência.” [Ratzinger] A Fé Cristã é “um salto arriscado”, um percalço, um degrau-tropeço, um ressalto, e nunca um fim naturalmente lógico e previsível da evolução da mente humana.

Porquê?

Porque é uma viragem, uma íntima ruptura, um golpe de rins, uma ‘metanoite’ derramada sobre tudo: sorte, bens, felicidade, dinheiro, relações humanas, produtividade, também sobre sofrimento, morte e dor.

Quebrar a cadeia da ilusão, da necessidade e da vontade e instaurar, em seu lugar, o trono do ser, da sujeição [à necessidade-consentida-manuseada] e da atenção.

“Tem como se não possuísses.” [S. Inácio de Loyola] “Não nos pertencermos.” [1ª Cor 6,19] “Por causa d’Ele, tudo perder,” [Fil 3,8] “carregando as cargas uns dos outros [...] examinando cada um sua própria acção,” [Gal 6,2] “esvaziar-se e humilhar-se” [Fil 2,7-8] “um esquecimento de si [...] um desapego grande de tudo [...] um grande gozo interior” [Teresa d’Ávila, 7ª Moradas, cap.3] “Amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio” [Gal 5,22]

“O Reino de Deus não vem de maneira que se note” [Lc 17, 20]

“Deus é muito amigo de que Lhe não ponham taxa e medida” [Teresa d’Ávila, 1ª Moradas, cap. 1]
“Quem somos? E neste corpo nos detemos... Grande peleja!” [idem]
Paulo Bateira


Ecos da Conferência
de Artur Morão
A ‘petite espérance’ num mundo em convulsão
Fundação Betânia
8 de Dezembro de 2007

2 comentários:

  1. Mais um belo sítio de passagem. Parabéns! Vou seguir atenta.

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  2. Olá Maria da Conceição!
    Agradeço a vista e o comentário gentil.
    É sempre um gosto ter-te por cá!

    Esperamos, em breve, poder publicar o texto da conferência de Artur Morão no Site da Fundação Betânia

    Bom Natal!!!

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