Relembro um sugestivo jogo de palavras, contido num ditado latino: Spiro, spero. A tradução é fácil: Respiro, espero. Esta associação de vocábulos, mais do que uma aproximação de sonoridades, conota a ideia da esperança como um respirar, o que para nós fará evocar aquele movimento criador do Espírito que converteu o inicial caos em cosmos (Génesis 1, 1-2). De facto, o movimento inicial do Espírito pairando sobre as águas é visto pela concepção bíblica como o suspiro da criação a querer libertar-se do nada.
Li algures que em hebraico o conteúdo semântico da palavra para designar a realidade da «esperança» está associado ao das vias respiratórias, órgão do corpo que assegura a passagem do ar, fonte de vida, e da água que mata a sede. A partir deste alcance etimológico, poderemos estender o conceito de esperança não apenas à ideia da respiração vital mas também à necessidade imperiosa de vencer um mal-estar, semelhante ao do sedento que, ao sentir o incómodo da secura na garganta, anseia ardentemente pela fonte. A esperança poderá, assim, ser entendida como uma energia cultivada por aquele que, diante de situações dolorosas, em vez de se enrodilhar nelas, sente-se acicatado por uma «febre de Além», (expressão de Fernando Pessoa num dos poemas de Mensagem) que o leva a acreditar que tudo pode ser diferente. Será a irreprimível ânsia de quem espera com paixão um mundo onde «Deus enxugará todas as lágrimas dos olhos e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor, porque o mundo velho já desapareceu» (Ap. 21, 4). Sem a nossa abertura para essa fonte de plenitude, dificilmente nos deixaremos envolver pela ardente utopia de um mundo novo.
Essa utopia converge com as genuínas aspirações da humanidade, mas há elementos da esperança cristã que lhe dão uma identidade própria: o facto de ter o seu alicerce fundamental no acontecimento da Ressurreição, o que provoca um certo grau de estranheza naqueles que não fazem tal aposta. O cristão sabe que as esperanças da humanidade nunca conseguirão construir o patamar entrevisto pela visão do Apocalipse, atrás referida. Iluminados por esse futuro, situado além daquilo que o homem histórico pode atingir, sempre teremos de nos opor aos ídolos do nosso mundo (sem nunca esquecer que esse «mundo» é parte integrante de cada um de nós), ajudando a construir propostas contra a corrente dominante, pois as ideias do maior número não são necessariamente as verdadeiras: A verdade, às vezes, é uma voz que clama no deserto. Esta «ousadia» não decorre de uma mania de vanguardismo mas de um acto de fé: é preciso acreditar no amor que não existe, para que ele venha a existir.
A esperança cristã terá de propor ao mundo um horizonte que ultrapasse aquilo que se vem designando, segundo a formulação de Max Weber, de «politeísimo de valores». É este horizonte que nos incita a ter uma reserva crítica em relação às aspirações deste mundo. A esta luz, teremos de nos interrogar se não temos que rever certos estilos de vida e modos de consumo, que pouco ou nada terão a ver com a construção de uma sociedade melhor, ou se, face às dificuldades da hora presente, não estaremos a cair na tentação da fuga para fora deste mundo. Para usar uma fórmula conhecida, a esperança não consiste em mudar de mundo, mas em mudar o mundo, mais concretamente em mudar a nossa relação com o mundo. Os critérios que norteiam essa «mudança» de perspectiva terão de inspirar-se na herança que Cristo nos deixou.
Depois ter sublinhado, através da narrativa dos reis Magos (Mt 2, 1-12), que a «Manifestação» do Messias fora alargada ao mundo pagão, Mateus coloca o início do ministério de Cristo em Cafarnaum, cidade situada num ponto de passagem usado pelos habitantes de «além Jordão» ( Mt 4, 12 – 17. 23-25). É na «Galileia dos gentios», espaço de encontro de várias culturas, que Jesus começa a proclamar que o Reino de Deus está no meio de nós. Lucas coloca este início da sua vida pública, imediatamente antes do famoso episódio da ida de Jesus à sinagoga de Nazaré, onde proclamou estar a cumprir-se a profecia de Isaías, referida a uma salvação messiânica associada a libertações historicamente verificáveis (Lc 4,14 -22.31- 41). A salvação anunciada por Jesus parte do seu encontro com os feridos da vida, pois ele, em vez de observar a humanidade à distância, tocou-a até ao cerne das suas feridas e deixou-se tocar por ela. Quando Cristo, por exemplo, tocou um leproso para o curar, tornou-se impuro diante dos escribas e fariseus. «Sujou-se» para purificar (Mc 3, 7-12. Cfr. Fil 2, 6-8, Gal 4, 4-5). Como se vê, os contornos da sua incarnação nada têm de fuga do mundo.
Cafarnaum é uma imagem do que deve ser a maneira de a Igreja estar no mundo: mergulhada na «massa» da humanidade. João Paulo II, num documento que teve pouca divulgação entre nós, insiste na urgência desta incarnação na realidade: «Este é seguramente um dever que interpela os cristãos: exercer sobre o tecido social uma influência que leve a transformar, não só as mentalidades, mas também as próprias estruturas da sociedade, de modo a que aí se espelhem melhor os desígnios de Deus acerca da família humana. Por isso mesmo, invoquei para os leigos uma formação completa que os ajude a levar uma vida plenamente coerente. A Fé, a Esperança e a Caridade não podem deixar de orientar o comportamento do autêntico discípulo de Cristo, em toda a sua actividade, situação e responsabilidade. (…) Os cristãos devem ser formados para viver as implicações sociais do Evangelho, de tal modo que o seu testemunho se torne um desafio profético perante aquilo que lese o verdadeiro bem dos homens e mulheres de África ou de qualquer outro continente (Ecclesia in Africa, 54).
É, pois, no coração deste mundo que a «energia» de Deus deseja fermentar, como se reza no Pai-Nosso: «que a Tua vontade seja feita na terra como no céu». Este reenvio para o mundo é um acréscimo de estímulo, em ordem ao empenho por uma sociedade mais justa e fraterna, sem termos medo do risco de errar, pois mais vale o erro com sinceridade do que a verdade sem caridade. É com os outros homens e mulheres que os cristãos devem contribuir para se ir elaborando pacientemente propostas que possam conduzir à construção de uma sociedade melhor.
Nas tentativas de articular a esperança cristã com o compromisso no mundo, três perigos são possíveis: o de absolutizar uma esperança política; o de estabelecer uma rotura total entre os reinos da Terra e o reino de Deus; o do conformismo, não ousando sair a terreiro com propostas audaciosas. A nossa dificuldade consistirá em tactear caminhos, procurando evitar estes três escolhos.
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